Notícia publicada originalmente no Migalhas

Na última quarta-feira, 9, a 3ª seção do STJ iniciou o julgamento do HC 920.980, que discute a possibilidade de remição de pena pelo trabalho de cuidado materno prestado por mulher encarcerada durante o período em que permaneceu com seu bebê na ala de amamentação da penitenciária.

Durante o julgamento, a subprocuradora-Geral da República Raquel Dodge divergiu do parecer do MPF e defendeu a concessão do habeas corpus. Ela pontuou que negar a remição  a mulheres que optam por cuidar de seus filhos no cárcere desestimula a maternidade e perpetua desigualdades de gênero. Por outro lado, reconhecer essa atividade como trabalho contribui para a reintegração social, o fortalecimento dos vínculos familiares e o pleno desenvolvimento da criança.

O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, defendeu que os cuidados maternos prestados por mulheres encarceradas devem ser reconhecidos como trabalho para fins de remição  de pena. Segundo S.Exa., essa equiparação é justa e juridicamente viável, com base em uma interpretação sistemática da legislação.

O ministro ressaltou a necessidade de interpretação ampla do conceito de trabalho, visando promover equidade de gênero, e lembrou que a jurisprudência já admite outras formas de atividade, como leitura e artesanato. Também citou o Protocolo do CNJ de Julgamento com Perspectiva de Gênero, que orienta a superação de estereótipos prejudiciais às mulheres.

Após o voto do relator, o ministro Joel Ilan Paciornik pediu vista, suspendendo o julgamento.

Justiça mais sensível às especificidades de gênero

As advogadas sócias do escritório Cecilia Mello AdvogadosCecilia MelloFlávia P. Amorim e Marcella Halah, autoras do artigo “A Amamentação como Trabalho de Cuidado para Fins de Remição da Pena”, publicado na obra “Proteção Jurídica dos Cuidados”, defendem o reconhecimento do cuidado materno como uma legítima forma de contribuição social no contexto prisional, ainda que não remunerado.

Elas observam que a manifestação do ministro Sebastião, ainda pendente de deliberação pelo colegiado, encontra paralelo em caso recente sob relatoria do ministro Messod Azulay Neto (HC 978.992). Inicialmente, o ministro havia deferido monocraticamente o pedido de remição de uma mulher que cuidava do filho lactente na creche da Penitenciária de Mogi Guaçu/SP. No entanto, reconsiderou sua própria decisão, reconhecendo a necessidade de apreciação do tema pelo colegiado, diante da ausência de jurisprudência consolidada da 5ª turma sobre o assunto.

Em abril de 2024, o TJ/SP também reconheceu como trabalho o período em que uma detenta amamentou o filho recém-nascido, determinando a redução do tempo necessário para progressão do regime fechado ao semiaberto. O relator, desembargador Mazina Martins, enfatizou a importância do cuidado materno na primeira infância.

Para Cecilia Mello, as recentes decisões representam um marco na valorização da economia do cuidado no sistema prisional.

“As recentes manifestações do STJ, tanto a proposta do ministro Sebastião Reis Júnior quanto a reconsideração do ministro Messod Azulay Neto – que remeteu o tema à análise colegiada diante da ausência de jurisprudência consolidada – representam um marco na valorização da economia do cuidado dentro do sistema prisional. Ao apontarem para a possibilidade de que a amamentação justifique a remição de pena, essas iniciativas não apenas dialogam com o precedente pioneiro do TJ/SP, como também enfrentam uma omissão histórica: a desconsideração do trabalho invisível realizado por mulheres encarceradas. Trata-se de um passo decisivo rumo a uma justiça mais equitativa e sensível às especificidades de gênero, que reconhece a maternidade como um exercício legítimo e essencial de cuidado.”

As advogadas alertam que, segundo dados do Ministério da Justiça, cerca de 44% das mulheres encarceradas são mães, e mais de uma centena delas estão em fase de amamentação. No entanto, a ausência de regulamentação específica sobre a remição nesses casos impede que essas mulheres exerçam plenamente os direitos previstos na legislação penal.

Nesse sentido, elas destacam a importância da PEC 14/24, em tramitação no Congresso Nacional, que propõe a inclusão do direito ao cuidado como direito social constitucional. Se aprovada, a mudança terá impacto direto nas diretrizes da execução penal feminina e nas políticas públicas de assistência à mulher presa.

 

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