Publicado originalmente na Consultor Jurídico
Por Cecilia Mello*
O ano de 2025 consolidou um movimento que vinha se desenhando desde o pós-lava jato: os acordos de leniência deixaram de ser uma resposta emergencial a escândalos específicos e se firmaram como política pública estruturada de conformidade e combate à corrupção e a ilícitos econômicos.
Desde 2017, CGU e AGU já celebraram 34 acordos de leniência, com empresas investigadas com base na Lei Anticorrupção e normas correlatas. Esses acordos somam mais de R$ 20 bilhões em valores pactuados, dos quais cerca de R$ 10 bilhões já foram efetivamente pagos aos cofres públicos.
Em 2025, o instrumento amadureceu, se espalhou por novos setores e alcançou o nível estadual. Mas também foi alvo de controvérsias, decisões judiciais relevantes e debates intensos sobre transparência, alcance e limites.
Novo mapa das leniências: ‘lava jato’, commodities, alimentos e estados
O calendário de 2025 começou com um caso emblemático: o acordo firmado pela Trafigura Beheer B.V., multinacional de commodities com histórico de contratos com a Petrobras. CGU e AGU, anunciando que a empresa pagará R$ 435,4 milhões em multa e ressarcimento, com base na Lei 12.846/2013, por atos de corrupção praticados entre 2003 e 2014.
Meses depois, veio um dos maiores acordos já celebrados: Seatrium Limited, Jurong Shipyard Pte. Ltd. e Estaleiro Jurong Aracruz, ligadas ao setor naval e investigadas no contexto da Lava Jato, firmaram acordo de leniência no valor de R$ 728,3 milhões, também com CGU e AGU.
No setor de alimentos, a Minerva S.A., grande grupo de proteína animal, assumiu compromisso de pagar R$ 22,04 milhões à União, em razão de irregularidades ocorridas antes de 2018.
Estes casos ajudam a ilustrar três tendências de 2025:
Diversificação setorial: a leniência saiu do eixo tradicional “empreiteiras e petróleo” e chegou a commodities, proteína animal e tecnologia.
Integração com o enforcement penal e concorrencial: acordos têm sido articulados com MPF, Cade e outros órgãos, ainda que com pontos de atrito.
Internacionalização: empresas com atuação global negociam em múltiplas jurisdições; o Brasil entra num tabuleiro transnacional de coordenação de sanções.
Entrada dos estados: caso SP
Um marco relevante de 2025 foi a consolidação da leniência em nível subnacional. O governo do estado de São Paulo, por meio da Controladoria-Geral do Estado (CGE-SP) e da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), celebrou o primeiro acordo de leniência estadual de sua história.
O acordo envolveu a Microstrategy Brasil Ltda. (Strategy Brasil), e garantiu ressarcimento superior a R$ 2 milhões aos cofres estaduais, além de compromissos de integridade e ajustes de governança corporativa.
O caso paulista sinaliza:
Capilarização do modelo da Lei 12.846/2013 para além da esfera federal;
Criação de estruturas estaduais de controle com capacidade de negociar e monitorar acordos;
Desafio futuro de coordenação entre CGU/AGU, estados e municípios, para evitar sobreposição de sanções pelo mesmo fato.
Efeito bumerangue de um acordo mal estruturado
O caso da J&F voltou ao centro das discussões em 2025 por um motivo recorrente em modelos de justiça negocial: um acordo de leniência mal estruturado, firmado sob fragilidades procedimentais ou pressões institucionais, inevitavelmente retorna para revisão.
As negociações com a CGU e a empresa para um possível novo acordo, somadas à decisão judicial que apontou coação na celebração do termo original como o MPF em 2017 e determinou a correção das multas, trouxeram à tona um aspecto crítico: quando critérios de legalidade e proporcionalidade não estão bem definidos, cria-se um ambiente de insegurança que gera repactuações sucessivas, contestações e desgaste institucional.
Esse episódio funcionou como alerta: a leniência não pode se transformar em instrumento vulnerável à instabilidade procedimental, sob pena de corroer sua credibilidade junto ao setor privado e ao próprio Estado.
Repactuação da ‘lava jato’: leniência em revisão pelo STF
O ano também foi marcado pela homologação, pelo ministro André Mendonça, da repactuação de acordos de leniência da ‘lava jato’, envolvendo empreiteiras que figuraram entre os maiores compromissos financeiros celebrados durante a operação. A repactuação incluiu descontos significativos, reescalonamento de pagamentos e revisão de cláusulas.
O julgamento, entretanto, foi suspenso após pedido de vista, e ainda depende de deliberação do plenário do STF.
A relevância desse caso para a retrospectiva é dupla:
Mostra que nem mesmo os acordos mais emblemáticos — e bilionários — são definitivos.
A possibilidade de revisão reforça que a leniência permanece em construção, sujeita a litígios e recalibragem.
Reacende debates sobre governança, credibilidade e previsibilidade.
A repactuação de multas e a renegociação de condições chamam atenção para a necessidade de critérios claros que evitem a percepção de que acordos podem ser flexibilizados com o tempo.
Esse episódio contribuiu para uma das principais conclusões de 2025: a leniência se consolidou como política pública, mas sua estabilidade depende de decisões institucionais consistentes.
Leniência regulatória e caso Campos Neto: quando o conceito é esticado demais
Em 2025, um episódio específico levou o tema da leniência para o centro da arena política e regulatória: o ato firmado pelo Banco Central com seu ex-presidente Roberto Campos Neto para encerrar processo administrativo relacionado a operações de câmbio quando ele era executivo do Santander.
Segundo informações divulgadas no Senado e em veículos de imprensa:
O atual presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, celebrou um acordo com Campos Neto para pôr fim ao processo administrativo.
O ex-presidente pagou R$ 300 mil, na pessoa física, para encerrar a apuração sobre essas operações.
Senadores da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) passaram a se referir ao ato como “acordo de leniência”, questionando a motivação jurídica, o ineditismo e o grau de publicidade do procedimento.
Em paralelo, análise publicada na imprensa especializada destacou que o instrumento firmado em 2025 não se enquadra tecnicamente como acordo de leniência, mas como termo de compromisso: não houve colaboração com investigações, confissão nem efeitos na esfera penal — elementos normalmente associados à leniência prevista na Lei 12.846/2013.
Esse enquadramento gerou críticas de parte da doutrina e da opinião pública, em torno de três pontos:
Diluição conceitual
Se qualquer ajuste administrativo envolvendo dirigentes de instituição financeira passa a ser chamado, politicamente, de “leniência”, o conceito se esvazia. Leniência pressupõe colaboração efetiva, benefício na sanção em troca de prova, e não apenas pagamento de valor para encerrar um processo.
Risco institucional
Quando o próprio regulador firma ato benéfico com quem o comandou no passado — ainda que dentro da legalidade —, abre-se espaço para questionamentos sobre independência, conflito de interesses e percepção de privilégio. Foi esse o contexto em que a CAE do Senado decidiu convocar Galípolo e o presidente do Coaf, Ricardo Saadi, para explicações públicas.
Reacendimento do debate sobre leniência
A convocação de Galípolo para explicar o acordo firmado com o ex-presidente do Banco Central recolocou no centro do debate público os limites e a natureza dos instrumentos negociais utilizados na administração pública e no sistema financeiro, especialmente no que se refere ao uso — e ao possível uso indevido — da expressão “acordo de leniência” fora de seu escopo jurídico original.
O caso Campos Neto, portanto, não é apenas mais um episódio individual. Ele simboliza a tensão entre:
o uso de instrumentos negociais em processos administrativos envolvendo o mercado financeiro; e
a necessidade de preservar credibilidade, transparência e coerência conceitual dos acordos de leniência propriamente ditos.
Normas em movimento: CGU/AGU, MPF e Cade ajustam as regras
Diante desse cenário, 2025 foi também o ano em que os próprios órgãos responsáveis decidiram rever e explicitar as regras do jogo.
Alguns marcos:
– A CGU abriu consulta pública, via Plataforma Participa + Brasil, sobre a minuta da Portaria Interministerial CGU/AGU, destinada a fixar critérios e procedimentos para negociação, celebração e acompanhamento de acordos de leniência no âmbito da Lei 12.846/2013 e para disciplinar a atuação da AGU nesses processos.
– O MPF, em novembro de 2025, anunciou um novo roteiro de negociação para acordos de leniência em parceria com outros órgãos de controle, buscando maior previsibilidade, padronização e redução de conflitos entre instituições.
– O Cade publicou, em setembro de 2025, a versão atualizada do Guia de Leniência Antitruste, detalhando procedimentos, ampliando o escopo de condutas cobertas e reforçando mecanismos de cooperação com outros órgãos.
Essas iniciativas apontam para um esforço de harmonização institucional, num contexto em que:
há acordos multilaterais (CGU/AGU/MPF/Cade/TCU);
parte dos acordos antigos está sendo repactuada ou judicializada; e
a pressão por transparência e segurança jurídica é crescente.
Entre o cheque e a mudança estrutural
Do ponto de vista de política pública, a retrospectiva de 2025 permite algumas leituras:
O instrumento mostra resultados concretos na recuperação de ativos – mais de R$ 10 bilhões retornaram aos cofres públicos e mais de R$ 20 bilhões foram pactuados em pouco menos de uma década.
A leniência se expandiu em escopo, alcançando estados, novos setores econômicos e casos com dimensão global.
Ao mesmo tempo, a leniência entrou em rota de colisão com percepções de privilégio, excesso de sigilo e insegurança jurídica, em especial nos episódios envolvendo J&F e o acordo do Banco Central com seu ex-presidente.
O desafio para os próximos anos pode ser resumido em três eixos:
Clareza conceitual
Distinguir com precisão — inclusive na comunicação pública — acordo de leniência, termo de compromisso, Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) e outros instrumentos de justiça negocial. Misturar tudo sob a mesma etiqueta fragiliza a confiança no sistema.
Coordenação institucional real
Transformar em prática a promessa de atuação conjunta de CGU, AGU, MPF, Cade, TCU e controladorias estaduais, com regras estáveis sobre competência, repartição de valores e critérios de desconto.
Transparência e controle democrático
Ampliar a publicidade de critérios, fórmulas de cálculo de multas e marcos de cumprimento dos acordos, preservando sigilos estritamente necessários, mas evitando que acordos de alto impacto apareçam ao público apenas por meio de vazamentos ou disputas políticas.
Se 2025 ofereceu lições claras, elas apontam para uma síntese: a leniência é instrumento poderoso, mas sensível. Seu futuro — e sua utilidade como política pública — depende de escolhas institucionais que privilegiem rigor técnico, estabilidade normativa e integridade do processo.