Artigo publicado originalmente no Estadão

Por Cecilia Mello, Flávia P. Amorim e Marcella Halah

Nos corredores dos hospitais e unidades de saúde do Brasil, um drama silenciado se repete diariamente. Crianças e adolescentes chegam aos consultórios e emergências não apenas com febre ou fraturas acidentais, mas também com hematomas, sinais de abuso sexual e marcas invisíveis de sofrimento emocional. Entre 2015 e 2021, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) registrou 202.948 casos de violência sexual contra menores. Desses, 41,2% vitimaram crianças e 58,8% adolescentes. Esses números são apenas a ponta do iceberg de uma epidemia oculta.

A violência contra menores tem repercussões devastadoras. Frequentemente, as vítimas carregam sequelas que as acompanham por toda a vida, afetando suas relações sociais, educacionais e emocionais. Estima-se que até 1 bilhão de crianças e adolescentes em todo o mundo sejam expostos a algum tipo de abuso. No Brasil, a situação é ainda mais penosa, agravada pela falta de infraestrutura adequada e pela escassez de políticas públicas eficazes. O silêncio de profissionais e instituições contribui para a continuidade desse ciclo de violência.

Os profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, desempenham um papel fundamental na identificação e denúncia desses casos. No entanto, muitos hesitam em agir, seja por medo de represálias, seja por falta de conhecimento sobre seus deveres legais. A um só tempo, essa inação mostra-se como uma falha ética e viola o compromisso de proteger as crianças e os adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro: qualquer suspeita de maus-tratos deve ser comunicada ao Conselho Tutelar. Constantemente invocado para justificar a omissão, o sigilo médico não se sobrepõe ao dever de proteger e reportar o ocorrido. O Código de Ética Médica permite a quebra do sigilo em casos de risco iminente à integridade física do paciente. Dessa forma, cabe aos profissionais de saúde agir na linha de frente no combate à violência contra menores.

Casos emblemáticos revelam o impacto da omissão. Em Lençóis Paulista (SP), um menino de cinco anos, com deficiência auditiva, foi levado ao hospital com hematomas na cabeça e no rosto. A equipe médica suspeitou da origem das lesões e acionou o Conselho Tutelar, que retirou a guarda da mãe após confirmar os maus-tratos. Em Sobradinho (DF), uma mãe abandonou seu bebê recém-nascido num terreno baldio. A criança foi resgatada, mas a situação expôs a carência de políticas públicas para apoiar mães em vulnerabilidade, que muitas vezes chegam ao desespero.

A violência sexual contra menores também expõe falhas nas instituições que deveriam protegê-los. Em 2020, uma menina de 10 anos precisou viajar até Recife para realizar um aborto legal após ser estuprada, enfrentando resistência e exposição indevida de seu caso. Em 2022, uma juíza e uma promotora tentaram impedir outra menina de 11 anos de realizar o procedimento, colocando-a num abrigo com o intuito de evitar o aborto legal. A falta de preparo das autoridades e a ineficiência do sistema só agravaram o sofrimento dessas vítimas.

Em outros casos, a violência é descoberta apenas porque as vítimas encontram nos profissionais de saúde o único espaço seguro para relatar sua dor. Em Goiás, uma adolescente de 16 anos revelou a uma médica durante uma sessão de hemodiálise que era violentada pelo pai. O relato resultou na prisão do agressor. No entanto, muitas vítimas não conseguem verbalizar a violência sofrida. As marcas físicas e psicológicas são tão profundas que elas se tornam incapazes de denunciar. A detecção precoce e a atuação assertiva dos profissionais de saúde são fundamentais para interromper esse ciclo de sofrimento.

O Brasil precisa de uma mudança de paradigma. A formação dos profissionais de saúde deve incluir capacitação efetiva para identificar e denunciar abusos. O treinamento contínuo e a conscientização são essenciais para garantir que médicos e enfermeiros possam reconhecer sinais de abuso e agir de forma adequada. A omissão não é mais uma opção. A sociedade precisa de profissionais que assumam a responsabilidade de proteger as crianças e os adolescentes.

Além disso, a notificação compulsória é um passo crucial para interromper o ciclo de violência. Embora o sigilo médico seja uma questão importante, o Código de Ética Médica permite a quebra do sigilo em situações de risco iminente à vida ou à integridade física de crianças e adolescentes. Nesse contexto, a documentação detalhada do atendimento no prontuário médico é essencial para o registro e posterior investigação do caso.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990) dispõe, em seu artigo 13, que a comunicação ao Conselho Tutelar é obrigatória em casos de castigo físico, tratamento cruel ou degradante e maus-tratos contra crianças e adolescentes. O artigo 245 também exige que médicos notifiquem às autoridades competentes sobre esses casos. Essas medidas visam garantir que todos os envolvidos na proteção da infância cumpram seu papel de maneira efetiva.

A proteção das crianças e adolescentes deve ser uma prioridade para todos. Cada caso de abuso evitado é uma chance de restaurar a dignidade e o futuro dessas vítimas.