Por Cecilia Mello e Celso Mori
Carlos Drumond de Andrade, que esculpia os seus versos na dura realidade brasileira, tinha pelo futebol a paixão de torcedor e o respeito como intelectual. A síntese das suas crônicas, reunidas no livro intitulado “Quando é dia de futebol”, está na afirmação de que o futebol é “a mais bem acabada metáfora do brasileiro”. Já Nelson Rodrigues, que escreveu “A Pátria de Chuteiras”, dizia que “o intelectual brasileiro que ignora o futebol é um alienado de babar a gravata”. Apparicio Torelly (“Match de foot-ball”), Ana Amélia de Queiroz Mendonça (“O Salto”), e o próprio Oswald de Andrade (“Bungalow das rosas e dos pontapés”), são outros exemplos de que o futebol transcende a realidade do brasileiro e habita o mundo das fantasias, alegorias e dos sentimentos mais profundos, onde os poetas e intelectuais transitam naturalmente.
Essas considerações são necessárias para que nos lembremos de que o futebol é um evento nacional. Está na cultura brasileira. Faz parte do nosso processo civilizatório.
Quem não gosta de futebol, e certamente haverá quem não goste, deve admitir que para muitos povos, e para o brasileiro em especial, o futebol é um fato social incrivelmente complexo. Não é apenas um esporte. É um fenômeno, na acepção plena do termo. Significa um fato da experiência humana que pode ser analisado de muitas perspectivas e em diferentes profundidades. E causa efeitos de muitas naturezas e extensões.
É por isso que o caso do jogador Robinho é dramaticamente doloroso. Sem dúvida um craque, de amplos recursos futebolísticos, entre os quais as incríveis pedaladas que adotou como sua marca registrada. Seu futebol não se discute. Mas o que se discute é se na sociedade de hoje, principalmente na brasileira que a duras penas procura firmar os seus valores inerentes à dignidade do ser humano, Robinho está em condições de ser o ídolo de centenas de milhares ou mesmo de milhões de torcedores.
Não nos cabe aqui, até porque já feito à exaustão, discutir minucias do processo que tramita na Justiça italiana, mas alguns aspectos precisam ser pontuados. Os fatos datam de janeiro de 2013. Em 2014 começaram as investigações e a condenação em primeira instância por violência sexual de grupo contra uma mulher de origem albanesa. A sentença de 2017 apresenta como fundamento da condenação o fato de os réus terem conhecimento de que a vítima estava em condição psíquica debilitada quando da prática dos atos sexuais em grupo. Há expectativa de que os recursos apresentados ao tribunal de segunda instância sejam julgados ainda neste ano. Ao que parece, o caso possibilitará a interposição de recuso à Corte de Cassação da Itália que, em linhas gerais, equivale ao nosso Superior Tribunal de Justiça.
Na hipótese de condenação definitiva, devemos lembrar que a nossa Constituição Federal protege o brasileiro nato, impedindo a sua extradição (art. 5º, inc. LI). Entretanto, há alternativas jurídicas que podem viabilizar a punição em território nacional. Brasil e Itália são signatários de Tratado sobre Cooperação Judiciária em Matéria Penal (Decreto nº 862/1993), mas há necessidade de que essa colaboração seja solicitada ao Brasil e que se observem as disposições pertinentes (art.7º, CP)
Do enredo todo, o que salta aos olhos ainda é uma cultura extremamente enraizada e permissiva da violência sexual contra a mulher. Uma verdadeira ausência de senso moral igualitário ao se reconhecer a prática do ato em si, mas não o identificar como um ato de violência por ter havido um suposto consentimento por parte da vítima.
Certo é que o consentimento eficaz em algumas modalidades de delito pode mesmo atuar como causa excludente da ilicitude da conduta ou do tipo penal, pois a prática aquiescida do ato ou se tornaria incompatível com tipo descrito ou deixaria de constituir um dano e passaria a se inserir na esfera de liberdade do indivíduo que o autorizou. Em outras palavras, no crime de estupro – “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (art.213 CP), não subsiste em seu núcleo central de “constranger alguém” se há um consentimento válido e eficaz.
A indispensável eficácia do consentimento pressupõe que a vontade seja livre, sem influências ou condicionamentos externos, e que seja manifestada por uma pessoa com capacidade, discernimento e informação sobre as consequências de seus atos. A embriaguez pode ser um fator de interferência nessa manifestação da vontade, um elemento comprometedor do consentimento, por alterar a capacidade plena de conhecimento de uma situação, a consciência acerca do contexto apresentado.
E o contexto apresentado se insere exatamente nesta hipótese, pelo menos nos termos da sentença e dos demais atos processuais divulgados, onde a mulher – totalmente embriagada e assim reconhecida pelos próprios acusados – é submetida a atos sexuais diversos e sem que tivesse condições mínimas de repudiá-los.
É assustador o quanto o acusado não se dá conta da ilicitude do ato, mesmo na extensão daquilo que admite ter praticado. As falas do processo e o teor da sentença que foram divulgados demonstram que havia pleno conhecimento quanto ao estado vulnerabilidade da mulher que fora subjugada. Reconhecida a total ausência de discernimento e possibilidade de defesa por parte dela, resta caracterizado o crime de estupro, se a violência sexual se concretizou nesse ambiente.
Há uma atitude contrária ao grande esforço que a sociedade tem feito para escancarar e abolir esse tipo de comportamento. Não se trata exclusivamente de feminismo, porque a violação de qualquer pessoa humana é inaceitável. E mais inaceitável ainda se a violação é contra alguém fragilizado.
A distorcida percepção e a banalização no trato de fatos tão graves e socialmente repulsivos, subestimam de forma ofensiva e degradante a figura feminina. Não é demais apontarmos que de acordo com os dados recentemente divulgados pelo Fórum de Segurança Pública, no ano de 2019, uma pessoa foi estuprada a cada 8 minutos no Brasil; das 66.123 vítimas de estupro, 86% eram mulheres e 57,9% tinham no máximo 13 anos. Esses números, além de estarrecedores, escancaram uma cultura de abusos e agressões relacionados à desigualdade de gênero que se encontra plenamente instaurada.
O episódio envolvendo o jogador Robinho causou manifestações e protestos nas redes sociais, mas foram os patrocinadores do Santos Futebol Clube que delinearam a final. Das dez empresas que investiam no clube, uma rescindiu o contrato e sete ameaçaram rescindir se a contratação fosse mantida. No dia 16 de outubro, o contrato celebrado apenas seis dias antes entre o clube e o jogador foi suspenso. Foi bom. Os ídolos dos nossos jovens precisam ter a responsabilidade de mudar essa história de violações e violência à igualdade de gênero.
Artigo publicado na LexLatin.