Artigo publicado originalmente no Valor Econômico

O ouro, um símbolo de riqueza e estabilidade ao longo da história, também ocupa um papel sombrio como facilitador da lavagem de dinheiro no Brasil, o 12º maior produtor mundial. Suas características intrínsecas, como alta liquidez, anonimato, fácil transporte e alto valor agregado em pequenos volumes, tornam-no uma escolha atraente para redes criminosas que precisam disfarçar os lucros obtidos por meio de atividades ilícitas e grupos de exploração ilegal dos recursos minerais. O uso estratégico desse metal destaca fragilidades regulatórias e desafios econômicos e sociais que exigem respostas urgentes e coordenadas tanto do Estado como da comunidade internacional.

O crime organizado se revela cada vez mais sofisticado, confundindo-se muitas vezes com atividades legítimas. Para que essas redes criminosas prosperem, é fundamental que o dinheiro ilícito possa ser “limpo”, para que seja incorporado à economia formal. O ouro se encaixa perfeitamente nesse processo, graças às dificuldades em rastrear sua origem e às brechas existentes no sistema de seu controle.

Além disso, o uso predominante de dinheiro em espécie no mercado de ouro e a informalidade que permeia o pequeno e médio comércio de (re)venda de joias em geral criam um ambiente propício para práticas ilícitas. Mesmo com avanços, como a obrigatoriedade da Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) – destinada ao registro de operações com ouro quando este é classificado como ativo financeiro ou instrumento cambial, implementada em 2023 -, há lacunas significativas que ainda são exploradas por organizações criminosas.

Nos últimos meses, a Polícia Federal tem intensificado operações contra o garimpo ilegal (a título de exemplo podemos citar a Operação Conglomerado), com foco em desmantelar redes criminosas que exploram o ouro sem licenciamento e utilizam o metal para alimentar esquemas de lavagem de dinheiro. A apreensão de toneladas de ouro extraído ilegalmente e o fechamento de garimpos em áreas de proteção ambiental, como a Terra Yanomami, destacam o papel crucial da fiscalização na proteção de recursos naturais e no combate ao crime organizado. Essas operações não apenas revelam o impacto ambiental da mineração ilegal, mas também desestruturam o financiamento das redes de exploração de pessoas e tráfico de armas.

O Relatório de Avaliação Mútua do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), elaborado sobre o Brasil em 2023, sublinha fragilidades regulatórias em toda a cadeia de produção e comercialização do ouro. Por outro lado, iniciativas como a Declaração Eletrônica de Movimentação Física Internacional de Valores (e-DMOV), utilizada para monitorar transações internacionais, representam passos importantes no combate ao problema. No mesmo sentido, existem relevantes diretivas de cunho administrativo, tais como a Resolução nº 23/2012 do Coaf e a Resolução nº 129/2023 da Agência Nacional de Mineração, que também demonstram um esforço para regulamentar o setor. Contudo, a eficácia dessas medidas ainda é limitada pela extensão do mercado informal.

No centro desse desafio está a necessidade de ampliação do poder cognitivo do Estado para que este aja de maneira rápida e inteligente, tornando-se capaz de coordenar informações e articular ações entre os diferentes órgãos estatais. A Rede-Lab, reestruturada pelo Ministério da Justiça em 2022, é um exemplo de como a cooperação institucional pode ampliar a capacidade de investigação e combate ao crime organizado. Essa rede conecta pontos dispersos – como as ações da Receita Federal, do Ministério Público e da Polícia Federal -, permitindo uma visão mais completa e integrada sobre as atividades criminosas e suas interseções com a economia legal.

A lavagem de dinheiro via mercado de ouro não é apenas um problema econômico, mas também social. A exploração ilegal desse recurso mineral impacta comunidades locais, destrói ecossistemas e perpetua desigualdades, frequentemente associada a condições de trabalho degradantes. Esses danos são ampliados pela ineficácia na fiscalização, especialmente entre pequenos e médios comerciantes, onde se concentra grande parte das práticas informais. Enquanto o mercado de luxo é rigidamente regulado, os atores menores permanecem vulneráveis, tornando-se elos fracos em uma cadeia que favorece o crescimento e desenvolvimento da criminalidade.

O combate a essas práticas exige uma abordagem integrada que transcenda fronteiras. A globalização conecta mercados e pessoas, mas também interliga redes criminosas, exigindo esforços coordenados em escala internacional. O Brasil já incorporou orientações do GAFI, como as recomendações sobre Cooperação Jurídica Internacional, e estabeleceu ferramentas como a Avaliação Nacional de Riscos (ANR 2021). Essas iniciativas mostram um compromisso crescente com a adoção de boas práticas globais, mas enfrentam o desafio de alinhar uma estrutura regulatória moderna a um mercado historicamente permeado por informalidade.

A autorregulação do setor pode ser uma solução viável para lidar com o comércio de pequeno e médio porte. Incentivar a adesão voluntária a padrões de transparência e rastreabilidade poderia facilitar a fiscalização estatal e reduzir as oportunidades para a atuação do crime organizado. Além disso, é essencial ampliar os recursos para capacitar instituições públicas a monitorarem eficientemente o setor. O fortalecimento da cooperação internacional também é crucial, especialmente em um mercado que opera além das fronteiras nacionais.

O ouro, com todo seu brilho e história, carrega consigo um paradoxo: enquanto representa riqueza e estabilidade, é também um dos pilares que sustenta o crime organizado. A batalha para regulamentar e fiscalizar esse mercado demanda um esforço mais amplo para proteger a economia, as instituições e as comunidades locais que sofrem os impactos corrosivos da criminalidade. Nesse cenário, o protagonismo do Estado, aliado à iniciativa privada e à cooperação internacional, é indispensável para garantir que o ouro brilhe por seu valor legítimo, e não como uma sombra de práticas ilícitas.

Marcella Halah, sócia do escritório Cecilia Mello Advogados, é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, autora do livro “Acordo de Leniência: controle de constitucionalidade de seus requisitos” e membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da mesma instituição (PUC-SP).

Link original: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/ouro-o-brilho-que-encobre-crimes.ghtml