Artigo publicado originalmente na ConJur

Por: Cecilia Mello

A convocação do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, para explicar o acordo de leniência celebrado com o ex-presidente da instituição Roberto Campos Neto pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, recoloca no centro do debate uma questão que o Brasil ainda não aprendeu a tratar com a devida maturidade institucional: a fronteira entre irregularidade administrativa e ilícito penal. A pressa em associar todo desvio a crime e todo acordo de leniência a confissão de culpa revela não apenas desconhecimento técnico, mas um risco real de enfraquecimento do próprio Estado de Direito.

O acordo de leniência é, por definição, um instrumento de colaboração. Previsto na Lei 12.846/2013 e em outros marcos legais, ele foi concebido para estimular a reparação de danos e o fortalecimento da integridade corporativa, permitindo que empresas e agentes públicos cooperem com investigações e revejam condutas irregulares. Sua lógica é a da eficiência administrativa, não a da punição penal. Confundir essas esferas, como vem ocorrendo no debate político em torno do Banco Central, é um equívoco que distorce o propósito do instituto.

A legislação brasileira estabelece que a leniência pode ser firmada por diferentes órgãos — Controladoria-Geral da União, Tribunal de Contas da União, Banco Central, entre outros —, cada qual no limite de sua competência. O Ministério Público Federal não é, e nem deve ser, parte obrigatória de todos os acordos. Se assim fosse, transformaríamos cada irregularidade administrativa em um processo criminal, o que não apenas seria juridicamente insustentável, como paralisaria a administração pública em uma espiral de desconfiança e judicialização.

São legítimas cobranças no caso do Banco Central
O caso do Banco Central, portanto, precisa ser analisado com serenidade. Se há questionamentos sobre a natureza do acordo ou a extensão das obrigações assumidas, é legítimo que o Senado cobre esclarecimentos — transparência é um valor republicano. Mas transparência não é sinônimo de exposição irrestrita. Há informações que, por força constitucional, devem permanecer sob sigilo, sobretudo quando envolvem dados sensíveis de terceiros, informações de mercado ou detalhes de investigações em andamento. Publicar tudo, sem filtro, seria tão danoso quanto ocultar o essencial.

O debate sobre a publicidade desses acordos é, aliás, uma das zonas cinzentas do sistema brasileiro. A regra geral é a da ampla publicidade dos atos administrativos. Mas o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o sigilo é legítimo quando protege o interesse público maior — como a preservação da investigação, o direito de defesa ou a confidencialidade de informações estratégicas. No caso de um banco central, cuja função é assegurar a estabilidade do sistema financeiro, essa ponderação é ainda mais delicada.

Outro aspecto muitas vezes ignorado é que o acordo de leniência não se esgota na assinatura. Ele se projeta no tempo: obriga o signatário a adotar medidas corretivas, a pagar valores devidos, a implementar programas de compliance e a colaborar efetivamente com as apurações. Só depois de comprovado o cumprimento integral dessas obrigações é que se pode dizer que o acordo foi satisfeito. Até lá, trata-se de um compromisso em curso — e, como tal, sujeito à fiscalização dos órgãos competentes.

Lições do episódio do Banco Central
A lição que emerge desse episódio é dupla. Primeiro, é urgente que as instituições de controle — Banco Central, CGU, TCU, Ministério Público — continuem aprimorando seus mecanismos de cooperação, para evitar sobreposições e lacunas. Segundo, é fundamental que o debate público sobre leniência seja pautado por rigor técnico e não por paixões políticas. O instrumento não foi criado para absolver culpados, mas para corrigir desvios com celeridade e eficiência. Quando usado corretamente, fortalece a cultura de integridade; quando manipulado como arma política, fragiliza a confiança nas instituições.

O caso do Banco Central não deve ser tratado como um escândalo, mas como oportunidade de amadurecimento institucional. É preciso compreender que irregularidades administrativas não são, necessariamente, crimes — e que o Direito Administrativo Sancionador tem suas próprias vias de reparação, distintas da esfera penal. Misturar essas fronteiras é perigoso: transforma o debate jurídico em espetáculo e a responsabilidade pública em retórica.

Ao fim e ao cabo, o país precisa decidir se quer um sistema de controle eficiente e técnico ou um tribunal permanente de inquisição moral ou ideológica. Acordos de leniência são ferramentas de aperfeiçoamento da governança, não atalhos para linchamentos políticos. É hora de tratar o tema com a racionalidade que a democracia exige — e com o cuidado que a justiça demanda.

*Cecilia Mello é advogada especializada em Direito Penal e Direito Público, mestre em Direito, Justiça e Cidadania pelo IDP, sócia e fundadora do Cecilia Mello Advogados, ex-desembargadora federal no TRF-3, ex-procuradora do Estado de SP e ex-juíza federal.