Publicado originalmente no LexLegal Brasil
Cecília Mello*
O Dia da Consciência Negra é um chamado anual — e necessário — para revisitar o passado, confrontar o presente e projetar o futuro, que ainda não alcançamos. Falar de igualdade racial no Brasil exige reconhecer que o racismo estrutural permeia instituições, relações sociais e dinâmicas de poder. No sistema de Justiça, esse impacto é ainda mais evidente: a quem se julga, como se pune, quem tem acesso aos direitos e quem permanece invisibilizado.
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Os dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgados pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) em outubro de 2025, reforçam esse alerta. O país registra 941.752 pessoas em cumprimento de pena, sendo 705.872 em unidades prisionais e 235.880 em prisão domiciliar. A demografia desse sistema não deixa espaço para dúvidas: 94% são homens, e a maioria é composta por pessoas negras (pretas e pardas). Falamos de um retrato que escancara a seletividade penal e demonstra como o racismo, mesmo quando não explicitado, estrutura o funcionamento das instituições.
Esse cenário exige respostas firmes e contínuas — e o Judiciário tem papel central nessa agenda. Não se trata apenas de punir com justiça, mas de garantir que o direito penal não seja mais um instrumento de perpetuação das desigualdades. É preciso avançar em políticas de inclusão, formação, sensibilização e transformação institucional.
As barreiras enfrentadas pela população negra no acesso à Justiça
A desigualdade racial no sistema de Justiça aparece em múltiplas camadas. Pessoas negras enfrentam maiores dificuldades para acessar defesa técnica qualificada, são mais frequentemente vítimas de abordagens policiais abusivas e têm menor probabilidade de receber medidas alternativas à prisão. A diferença de tratamento não é episódica: é estrutural.
Além disso, a presença reduzida de profissionais negros nas carreiras jurídicas — magistratura, Ministério Público, advocacia pública e privada — impacta diretamente a forma como casos são analisados, interpretados e julgados. Diversidade não é apenas uma meta simbólica; é um componente indispensável para decisões mais justas, plurais e conectadas com a realidade social brasileira.
Políticas inclusivas no Judiciário: avanços e caminhos possíveis
Nos últimos anos, surgiram iniciativas relevantes. Programas de cotas em concursos públicos, ações afirmativas em universidades e incentivos à representatividade vêm corrigindo, ainda que lentamente, distorções históricas.
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No âmbito institucional, destaca-se o Programa de Bolsas para Negros e Indígenas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do qual nosso escritório é apoiador. A iniciativa busca ampliar a presença de negros e indígenas no setor jurídico, oferecendo suporte para formação e desenvolvimento profissional. Trata-se de uma estratégia concreta para transformar a base do sistema: fortalecer quem ingressa hoje para, amanhã, ocupar posições de liderança e decisão.
Esse tipo de política demonstra que a inclusão não é apenas possível, mas necessária. Contudo, ainda há muito a ser feito. É preciso garantir que ações afirmativas sejam permanentes, avaliadas e ampliadas. É urgente investir em capacitação contínua de magistrados e servidores para reconhecer e enfrentar vieses raciais que influenciam decisões e procedimentos. E é essencial aproximar o sistema de Justiça das comunidades mais vulneráveis, ampliando o acesso à informação, à defesa e às garantias fundamentais.
Por uma Justiça verdadeiramente igualitária
O enfrentamento ao racismo estrutural não pode ser encarado como pauta de um único dia, tampouco como responsabilidade isolada de grupos minoritários ou instituições específicas. É uma tarefa coletiva, que atravessa a sociedade e exige compromisso permanente.
As transformações necessárias dependem de vozes comprometidas, qualificadas e dispostas a questionar as estruturas vigentes. Depende também da formação de novas gerações de juristas e magistrados capazes de compreender, com profundidade, o contexto social em que o Direito opera.
O Judiciário tem força, legitimidade e alcance para liderar parte desse processo. Mas a mudança só será duradoura quando vier acompanhada de políticas públicas consistentes, participação social e renovação dos quadros profissionais — inclusive por meio de programas como o do CNJ.
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No Dia da Consciência Negra, reafirmo que lutar por igualdade racial não é uma agenda identitária; é uma agenda democrática. Um Estado verdadeiramente justo só se realiza quando todos os seus cidadãos têm garantidos — de forma plena — os mesmos direitos, oportunidades e dignidade. É essa Justiça que devemos construir, todos os dias.
*Cecilia Mello é sócia-fundadora do Cecilia Mello Advogados, foi advogada e procuradora do Estado de São Paulo entre 1985 e 2003 e, posteriormente, desembargadora do TRF-3 até 2017. Mestre em Direito, Justiça e Cidadania pelo IDP, foi conselheira da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.