Por Flávio Ferreira e Renata Galf
Para especialistas, sistema federalista restringe interferência do presidente em decisões nas áreas de saúde, educação e comércio
O sistema federalista adotado no Brasil concede autonomia administrativa para estados e municípios em áreas como saúde, educação e comércio, o que restringe a possibilidade de interferência do presidente em decisões de governos locais nesses campos.
Esse é o entendimento de especialistas em direito constitucional e administrativo ouvidos pela Folha na semana em que o presidente Jair Bolsonaro criticou o fechamento de escolas, comércios e outras medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos em meio à pandemia do coronavírus.
Neste domingo (29), na contramão das orientações do Ministério da Saúde, Bolsonaro conclamou as pessoas a voltarem para as ruas para trabalhar e disse estar com “vontade” de fazer um decreto para liberar todas as atividades.
Questionado se o texto já estava em estudo, Bolsonaro afirmou que havia acabado de pensar na ideia.
O presidente pode determinar a reabertura do comércio revogando proibição estabelecida por governadores e prefeitos?
Não. De acordo com o professor de direito público da FGV-SP Carlos Ari Sundfeld, o presidente não pode revogar a proibição. “O Brasil é uma Federação, e atos municipais e estaduais não podem ser revistos pelo presidente.”
“Governadores e prefeitos podem determinar o fechamento do comércio ainda que o Ministério da Saúde entenda que a quarentena não é necessária.”
Segundo ele, estados e municípios só não podem contrariar a determinação de manter atividades essenciais funcionando, cabendo ao presidente da República definir, por decreto, quais as atividades essenciais que não podem ser paralisadas, de acordo com o artigo 3º da lei 13.979 de 2020, que estabelece as medidas de combate ao coronavírus.
Sundfeld afirma ainda que, mesmo que os governos estaduais cometessem um ato ilegal, não cabe à União a competência de revisão de atos dos outros entes federativos. “Tudo o que o presidente pode fazer é acionar a Justiça contra o ato.”
O presidente pode determinar a reabertura de escolas municipais e estaduais revogando proibição estabelecida por governadores e prefeitos?
Não. Segundo o advogado Fernando Cais, sócio do escritório Cais, Rangel, Da Matta, Fonseca e Mollica Advogados, a lei 13.979 outorga competência para as autoridades locais de saúde para adotarem as medidas de quarentena que entenderem necessárias.
“É importante lembrar que a competência comum do ministro da Saúde para dispor sobre a quarentena não exclui a competência dos gestores locais e, nos casos em que as medidas adotadas sejam conflitantes, deve-se preservar as medidas locais a fim de preservar o federalismo. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal”, disse Cais.
O presidente pode determinar o fim da quarentena ou confinamento em relação à circulação das pessoas nas ruas, revogando proibição estabelecida por governadores e prefeitos?
Não. Segundo a advogada e juíza aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Cecilia Mello, a portaria 356 de 2020 determina que a medida de quarentena “será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão”.
O Ministério da Saúde, no boletim epidemiológico divulgado em 14 de março, estabeleceu critérios objetivos para identificação de situações para as quais seriam necessárias a declaração de quarentena: transmissão comunitária; que haja menos de 20% dos leitos de UTI disponíveis para recepção de pacientes graves detectados com a Covid-19.
“Ou seja, é claro que são os entes federativos locais [estados e municípios] que detém capacidade para aferir a quantidade de leitos disponíveis para os pacientes infectados com o novo vírus, de maneira a evitar a sobrecarga do sistema de saúde local e decretar ou não a quarentena de modo a atender as necessidades próprias, consoante determinação do art. 198 da Con stituição Federal”, disse Mello.
O presidente pode determinar o fim de restrições de circulação em rodovias interestaduais e intermunicipais estabelecidas por governadores e prefeitos?
De acordo com o professor de direito público da FGV-Rio Wallace Corbo, a circulação dentro dos limites do município e dos estados não pode sofrer interferência por parte do governo federal. A atuação da União cabe em estrições de circulação interestadual e internacional.
“Se o prefeito edita um decreto que só o presidente poderia editar, o decreto é inconstitucional. Mas se o presidente edita um decreto que só o prefeito poderia editar, também o decreto do presidente será inconstitucional”, afirma.
O presidente pode determinar o fim de restrições no uso de transportes coletivos locais, intermunicipais e interestaduais estabelecidas por governadores e prefeitos?
Assim como no caso das rodovias, também para os transportes coletivos não pode o presidente interferir sobre restrições no nível municipal e intermunicipal.
O presidente pode determinar o fim de restrições no uso de transportes aéreos estabelecidas por governadores e prefeitos?
Sim, pois tanto o transporte aéreo quanto os aeroportos são serviços de competência do governo federal.
De acordo com o professor Sundfeld, “governos estaduais não podem mandar parar o transporte aéreo. Esse ato não vale nada. Nesse caso, a União pode pedir que aeroportos e companhias aéreas ignorem o ato da autoridade local”.
Segundo Sundfeld, caso a autoridade local insista na suspensão do serviço, a União pode usar força policial para impedir o fechamento.
O presidente pode determinar o fim da proibição de realização de cultos religiosos estabelecida por governadores e prefeitos?
Sim, o presidente fez isso por meio de um decreto. Nesta quinta-feira (26), ele incluiu atividades religiosas e casas lotéricas no rol de serviços essenciais, que não podem ser interrompidos durante os esforços de combate ao novo coronavírus.
A norma estabelecia que estava proibida “a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, e de cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população”.
Um dia depois, porém, a Justiça Federal proibiu o governo federal de adotar medidas contrárias ao isolamento social como forma de prevenção da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.
Também suspendeu a validade de dois decretos editados pelo presidente que classificaram igrejas e casas lotéricas como serviços essenciais, o que permitia seu funcionamento mesmo com proibições de aglomerações em estados e municípios. A medida tem efeito imediato e vale para todo o Brasil.
No atual regime de calamidade pública, quais são os poderes excepcionais atribuídos ao presidente?
Segundo Luciano de Souza, sócio de Relações Governamentais do escritório Cescon Barrieu, “a calamidade pública reconhecida pelo Congresso foi baseada na Lei de Responsabilidade Fiscal, que não tem o condão de atribuir poderes excepcionais ao presidente, como ocorre no caso de decretação de estado de defesa ou estado de sítio”.
A calamidade pública tem como objetivo afrouxar regras de responsabilidade fiscal, suspendendo, por exemplo, os limites de despesa total com pessoal, e dispensando o atendimento das metas de resultados fiscais.
Se o presidente decretar estado de sítio, quais poderes excepcionais ele adquire?
Segundo o professor Felipe Balera, na vigência do estado de sítio poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos e requisição de bens.
De que forma o presidente poderia revogar decisões dos governadores?
A única forma de o presidente intervir nos atos de um estado é por meio de intervenção federal, segundo o professor de direito da FGV-Rio Daniel Vargas.
Constam na Constituição como hipóteses para isso os casos de guerra, invasão estrangeira e grave comprometimento da ordem pública.
Esta última, segundo Vargas, seria a que mais se aproxima da disputa atual entre Bolsonaro e governadores. Uma vez decretada a intervenção, o Congresso deve analisar a decisão em até 24 horas.
Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo.