A difusão da pandemia do novo coronavírus determinou várias e graves crises nacionais e internacionais. Potencialmente considerado como um dos maiores episódios globais recessivos da história, o manejo da situação relativamente às vacinas requer atitudes de cooperação internacional entre países e organismos, voltadas ao compartilhamento de informações epidemiológicas, pesquisas, recomendações científicas e até mesmo de distribuição e logística.
Internamente, o combate à pandemia demanda gestão e governança de políticas públicas de amplo espectro e particularmente daquelas voltadas ao atendimento de saúde. Tais políticas devem contemplar imunização ampla da população, lastreada em diversas vacinas de primeira geração, recém aprovadas ou em vias de aprovação pelos órgãos competentes, tanto na esfera nacional quanto internacional. A gestão da crise necessita estar constitucional e legalmente respaldada, com clara definição de prioridades e competências, o que nem sempre se constata com clareza. Os desafios à capacidade dos governantes são complexos e os mecanismos de atuação são limitados a curto espaço de tempo, além de demandarem vultosos recursos econômicos e uma imensidão de recursos humanos especializados.1
Atrasado na corrida global pela compra de vacinas, o Brasil se mostra desprovido de uma estratégia nacional uniforme. Consequentemente, adota medidas que, em uma análise inicial, podem levar a resultados assimétricos, favorecendo um cenário de insatisfações de justas expectativas e injustiças sociais.
Foi exatamente essa a sensação causada pela edição da Lei nº 14.125, em 10 de março de 2021, que dispõe sobre a responsabilidade civil em relação a eventos adversos decorrentes da vacinação contra a Covid-19, mas também disciplina a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.
Importante destacar de início que referida lei é de vigência temporária, ou seja, “enquanto perdurar a Emergência em saúde Pública de Importância Nacional, declarada em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-Cov-2)” (Art.1º). Insere-se, portanto, no contexto de um regime transitório e excepcional, embora não se tenha um marco temporal predeterminado para cessar.
São dois os aspectos principais da Lei nº 14.125/2021: (i) autoriza os entes federados de um modo geral a adquirir vacinas e assumir os riscos referentes à responsabilidade civil por eventos adversos pós-vacinação, nos termos dos contratos que vierem a celebrar; e (ii) autoriza a aquisição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado diretamente dos respectivos fabricantes. Nas duas hipóteses, a lei delimita as condições.
Quanto à aquisição e assunção de responsabilidade pelos entes federados, é pressuposto que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tenha concedido registro ou autorização temporária emergencial à vacina. Faculta-se ao ente, ademais, a constituição de garantias ou a contratação de seguro privado, inclusive internacional, mas sempre restrito às aquisições realizadas pelo respectivo ente público. Determina-se a adoção de medidas efetivas para dar transparência aos recursos públicos utilizados com essa destinação, bem como ao processo de distribuição das vacinas e dos insumos.
Relativamente à aquisição direta por pessoas jurídicas, da mesma forma, há necessidade de que as vacinas tenham autorização temporária para uso emergencial e, ainda, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário concedidos pela ANVISA. Essa autorização está condicionada à doação integral das vacinas adquiridas pelo particular, ao Sistema Único de Saúde (SUS), para fins de utilização no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Após a imunização dos grupos prioritários, as vacinas adquiridas nesse contexto poderão ser livremente distribuídas, desde que 50% (cinquenta por cento) das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS, e as demais aplicadas de forma gratuita.
As vacinas, adquiridas por pessoas jurídicas de natureza privada nas condições fixadas pela lei, poderão ser distribuídas e aplicadas em estabelecimento ou serviço de saúde que atenda às necessidades correspondentes, de acordo com as exigências regulatórias. Na mesma linha de transparência, todas as informações deverão ser franqueadas ao Ministério da Saúde e sofrerão controle e monitoramento específicos.
A matéria é objeto MS-ANVISA-Resolução RDC Nº 476, de 10.03.20212, e poderá demandar o cumprimento de exigências adicionais estabelecidas por Instrução Normativa/ANVISA.
A saúde, na condição de direito universal constitucionalmente assegurado, pressupõe acesso amplo e igualitário a todos os brasileiros, usuários em potencial do Sistema Único de Saúde-SUS. O artigo 198 da Constituição, institui o Sistema Único de Saúde-SUS e determina, dentre outras diretrizes básicas, a integralidade do atendimento. O artigo 200 da Constituição, por sua vez, estabelece as competências do Sistema Único de Saúde-SUS, tendo sido regulamentado pela Lei nº 8.080/90 e pela Lei nº 8.142/90.
O Programa Nacional de Imunizações-PNI, por seu turno, consiste em uma política pública estabelecida pela Lei nº 6.259/1975, sendo o seu grande eixo a disponibilização, a todos os cidadãos brasileiros, de todas as vacinas obrigatórias presentes no calendário da Organização Mundial de Saúde.3 Não obstante o Programa Nacional de Imunizações anteceder à criação do SUS, insere-se dentro desse sistema, nos termos do artigo 6º da Lei nº 8.080/90,4 levando à estrita observância dos preceitos constitucionais deferidos à saúde, de universalidade, equidade e integralidade.
O texto da Lei nº 14.125/2021 não afronta, em princípio, o arcabouço constitucional do nosso sistema de saúde, ou mesmo as diretrizes do Programa Nacional de Imunizações, haja vista proteger e preservar a universalidade de atendimento, a gratuidade e os grupos prioritários para a vacinação. Entretanto, da mesma forma que a ciência não pode substituir a política, tampouco a lei, em si, tem esse condão.
Quando as decisões são políticas, são também diversos os interesses e valores em ponderação. E são os políticos que devem equilibrar as considerações médicas, econômicas e sociais de maneira a alcançar uma política pública de saúde universal e abrangente. Os avanços científicos e tecnológicos de 2020, sem precedentes na história, não bastam para resolver a crise da Covid-19. Eles transformaram a epidemia de uma calamidade natural em um dilema político. Se hoje a humanidade possui as ferramentas científicas para combater a Covid-19, essas ferramentas, por si sós, não impedem o alto preço econômico e social, tampouco o fracasso na gestão.5
Há uma imensa responsabilidade política no escolher prioridades. No Brasil certamente houve negligência ao se minimizar o perigo e retardar conscientemente ações de enfrentamento com milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Em termos mundiais, embora alguns países estejam apresentando um desempenho melhor do que outros, até agora não se conseguiu conter a pandemia ou elaborar um plano global para derrotar o vírus. A falta de cooperação se manifesta em guerras de informações e, especialmente, em disputas por equipamentos, insumos e vacinas. Nenhuma tentativa séria foi feita para reunir todos os recursos disponíveis, agilizar a produção global e garantir a distribuição equitativa de suprimentos. Os nacionalismos sobre cobertura vacinal podem até vir a erradicar o vírus dentro de determinadas fronteiras, mas ele continuará a se espalhar por centenas de milhões de pessoas sem respeitar limites geográficos. E, as mutações sucessivas poderão comprometer a eficácia das vacinas, resultando em novas ondas de infecção.6
É nesse cenário que devem ser analisadas todas as medidas implantadas no Brasil. A Lei nº 14.125/2021 é bem-vinda. Entretanto, a efetiva gestão da emergência vacinal e da pandemia como um todo exige solidariedade humana e visão política, como energias mobilizadoras de uma coordenação nacional de políticas públicas voltadas para o objetivo comum, sem outros interesses.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde – ANVISA. Resolução RDC Nº 476, de 10.03.2021. Brasília, DF, 2021.
HARARI, Yuval Noah Yuval Noah Harari: Lessons from a year of Covid | Free to read | Financial Times. Disponível em: <https://www.ft.com/content/f1b30f2c-84aa-4595-84f2-7816796d6841>. Acesso em: 22 mar. 2021, 10:15.
SENHORAS, Elói Martins (organizador). COVID-19, Política e Direito. Boa Vista: Editora da UFRR, 2020, p. 28.
NOTAS
1 SENHORAS, Elói Martins (organizador). COVID-19, Política e Direito. Boa Vista: Editora da UFRR, 2020, p. 28.
2 BRASIL. Ministério da Saúde – ANVISA. Resolução RDC Nº 476, de 10.03.2021. Brasília, DF, 2021.
3 Art. 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.
Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.
4 Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I – a execução de ações: a) de vigilância sanitária; b) de vigilância epidemiológica; (…)
5 HARARI, Yuval Noah. Yuval Noah Harari: Lessons from a year of Covid | Free to read | Financial Times. Disponível em: <https://www.ft.com/content/f1b30f2c-84aa-4595-84f2-7816796d6841>. Acesso em: 22 mar. 2021, 10:15.
6 HARARI, Yuval Noah Yuval Noah Harari: Lessons from a year of Covid | Free to read | Financial Times. Disponível em: <https://www.ft.com/content/f1b30f2c-84aa-4595-84f2-7816796d6841>. Acesso em: 22 mar. 2021, 10:15.