Publicado na Folha de S.Paulo
A exposição de detalhes da rotina do gabinete do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a partir de uma série de quebras de sigilo determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), gera dúvidas sobre a legalidade da medida.
Criminalistas ouvidos pela Folha afirmam que, por se tratar de uma medida excepcional de investigação, ela só é adotada a partir de indícios concretos de sua necessidade e de forma proporcional ao que é investigado.
Uma quebra ordenada ainda em 2021 permitiu à Polícia Federal acessar a nuvem em que eram armazenadas todas as conversas do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente. As mensagens, às quais a Folha teve acesso em parte, mostram detalhes da rotina da Presidência e diálogos entre assessores abordando diferentes assuntos internos.
A investigação teve origem no caso do vazamento do inquérito do ataque hacker ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), utilizado por Bolsonaro para atacar a segurança das urnas eletrônicas.
Com a quebra de sigilo telemático de Mauro Cid, o delegado Fabio Shor, responsável pelo caso, pediu uma série de novas quebras de sigilos com base no material encontrado.
Juíza federal aposentada do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), a advogada criminalista Cecília Mello afirma que o descumprimento de regras expõe a investigação.
“Caminhar em uma repetição das práticas lava-jatistas é expor ao insucesso a apuração de fatos que, sim, podem ser graves, mas não devem ser confundidos com posições e interesses políticos. No episódio Lava Jato, o STF atuou como guardião do processo penal constitucional. E agora, quem será o guardião?”, diz.
Vinicius de Souza Assumpção, segundo vice-presidente do IBCCrim, afirma que no caso de acesso a dados armazenados em dispositivos físicos ou virtuais é preciso seguir os parâmetros previstos pelo Marco Civil da Internet, de proteção à intimidade, e de outras leis, sob o risco de invalidar a investigação.
“Eventuais excessos, como a quebra do sigilo de dados que não estejam amparados pela decisão judicial, podem configurar ilegalidade, dando margem à imprestabilidade não só do que foi coletado, mas de tudo que decorrer desse elemento ilicitamente encontrado”.
Para a advogada criminalista Marina Coelho, conselheira do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), a quebra de sigilo é lícita se houver proporcionalidade no que é acessado.
“A quebra de sigilo não é bisbilhotar o outro. Ela é determinada para uma investigação que tenha um objeto claro, determinado e objetivo. Uma quebra que é determinada para ficar pescando qualquer coisa é uma prova inconstitucional que deve ser retirada dos autos e não pode surtir efeito”, afirma.
A mesma leitura é feita pelo professor de direito processual penal da PUC-SP Claudio Langroiva, que classifica como indevido e abusivo o acesso a informações não relacionadas.
“À medida que isso é vazado e permitida a publicação, temos um ilícito que precisa ser apurado, porque isso já foi feito no passado, no âmbito da Lava Jato, e foi uma situação extremamente triste e vergonhosa por parte do Judiciário e isso está voltando a ocorrer do outro lado, o que também é inadmissível”, afirma.
Professora de direito e processo penal do Insper, a advogada Tatiana Stoco afirma que, após o governo Bolsonaro, em que houve leniência de Augusto Aras (PRG) em relação a atos do governo, a comunidade jurídica tem questionado “se os fins justificam os meios”.
“Essa forma de atuar do ministro Alexandre de Moraes, deferindo medidas mesmo contrariamente à decisão da PGR, nos causa certo incômodo no sentido de que não se admite no sistema brasileiro uma atuação do magistrado pela busca de provas. É uma atuação de ofício, ainda que na fase de investigação.”
Stoco, porém, afirma que é precipitado concluir que o sigilo abarcou muito mais do que era necessário sem ter acesso ao processo.
Para o advogado criminalista Celso Villardi, professor da FGV, o que é questionável no caso é a competência do Supremo para investigar Mauro Cid, pois decisões da corte indicam que investigações sobre pessoas sem foro por prerrogativa de função devem ser enviadas para a primeira instância.