No meio a pandemia da covid-19 mais uma Medida Provisória foi publicada no D.O.U. de 14 de maio – a MP 966. Nela fica estabelecido que agentes públicos passam a ser isentos de responsabilidade, nas esferas civil e administrativa, por erros que cometam durante o enfrentamento da emergência de saúde ou de seus efeitos na economia do País, salvo a hipótese de ação ou omissão dolosas ou decorrentes de erro grosseiro.
Além de afastar a responsabilização dos agentes públicos pela prática de atos culposos que não sejam praticados com erro grosseiro, a MP 966 traz definição própria sobre erro grosseiro, sendo este o “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (art. 2º), bem como critérios a serem observados para a aferição de sua ocorrência, quais sejam: “I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas” (art.3º).
Diferentemente das medidas provisórias, o processo legislativo ordinário exercido pelas Casas do Congresso Nacional e, portanto, inserido na competência do Poder Legislativo, traz implícita a noção de representatividade e de discussão pública previas à edição da lei, evidenciando a efetividade da democracia que se iniciou no exercício do direito de voto. A lei traz em si um conteúdo democrático.
A Constituição Federal permite, de forma excepcional e diante de circunstâncias disciplinadas, o exercício da função legislativa pelo Poder Executivo, o que se dá, no âmbito ora em discussão, por meio da edição de medidas provisórias.
As medidas provisórias decorrem, pois, de expressa competência constitucional conferida ao Presidente da República para editar comandos normativos com força de lei, em situações cobertas de relevância e urgência, que devem ser submetidas de imediato ao Congresso Nacional (arts. 84, XXVI, e 62 da CF). Não são medidas inseridas no âmbito do poder discricionário do governo, pois somente poderão ser editadas diante de situações fáticas dotadas de importância singular, verificadas em um contexto de imprevisibilidade e com vistas ao atendimento emergencial de um interesse público.
Deve haver um estado de necessidade para a edição de medida provisória, cuja providência reclamada não pode – sob pena de dano – se submeter ao processo legislativo ordinário. Assim, incumbe ao Presidente da República demonstrar, motivadamente, a existência dos pressupostos autorizadores, bem como a exata correlação entre os motivos invocados e o resultado pretendido, ou seja, entre os fundamentos que autorizam a edição da medida provisória e o seu conteúdo normativo propriamente dito.
A par desses pressupostos, as medidas provisórias não podem tratar indistintamente sobre qualquer tema, sendo vedado dispor sobre as matérias apontadas no artigo 62, II e parágrafo 1º CF, sobre matérias de deliberação privativa ou exclusiva do Congresso Nacional ou de cada uma de suas Casas, em prejuízo ao princípio da separação dos Poderes, por exemplo. Não convertida em lei, a medida provisória perderá eficácia ex tunc, devendo decreto legislativo disciplinar as relações jurídicas decorrentes (art. 62, § 3º, CF). Entretanto, na hipótese de não edição do referido decreto no prazo estabelecido, a medida provisória continuará regendo as relações jurídicas constituídas e os atos praticados durante sua vigência (art. 62, § 11, CF).
Embora haja um controle exercido a posteriori pelo Congresso Nacional, as medidas provisórias não estão imunes ao controle judicial na hipótese de lesão ou ameaça de lesão a direito, e aqui reside a análise da MP 966.
Importante sinalar que o contexto de pandemia pela covid 19, cujo espectro de evolução e contaminação é de conhecimento científico ainda bastante restrito, porém com notórias consequências de profunda gravidade na saúde pública, caracteriza circunstância que, por si só, já se mostra propícia a edição de medidas provisórias. A dinâmica de combate à pandemia deve fazer frente a constantes novas orientações de natureza médica, necessidades sociais prementes e todo o ajuste econômico decorrente dessas ações.
O presidente da República, desde o início do seu mandato, editou 95 medidas provisórias, das quais: 15 foram convertidas em lei; 22 foram rejeitadas ou tiveram vigência encerrada; e 58 encontram-se em tramitação. Dessas 58 medidas provisórias em andamento, 46 foram editadas a partir da declaração de emergência de saúde pública.
Dessa forma, o cenário de urgência, isoladamente considerado, mostra-se presente, porém não é suficiente para fundamentar a edição de medidas provisórias sem que haja a estrita correlação com a providência legal pretendida. Mais, a providência legal almejada, como lei de vigência temporária que é, deve ser avaliada em sua legalidade e está sujeita ao controle de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
O princípio da legalidade, também chamado de princípio do Estado de Direito, em seu conteúdo principal implica na necessidade de submissão da atividade administrativa à lei. É forma de limitação da atividade do Poder Executivo que, por meio da obediência à lei, compartilha os atos políticos de gestão pública com a população. A primazia da lei e do Direito se colocam como norte e limites da atuação da Administração Pública. Entretanto, não basta que o Poder Público se paute na letra da lei, pois a sua atuação deve também objetivar a satisfação do interesse público.
A MP 966, em seu núcleo central, pretende alterar substancialmente a definição jurídica de ato ilícito, interferindo diretamente no dever de indenizar, de reparar o dano causado, pois, se “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art.186 CC), não mais o cometerá, na forma culposa, se investido na condição de agente público e não se tratar de erro grosseiro.
Com tal disposição, a MP 966 isentará inúmeros agentes públicos da responsabilidade de reparar os danos causados, seja ao Estado, seja a terceiros. Entretanto, a responsabilidade objetiva do Estado não é – e nem pode ser – afastada, haja vista constar de preceito constitucional não passível de modificação por meio de medida provisória.
O artigo 37 da Constituição Federal dispõe que a administração pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes dos entes federados, “obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. O parágrafo 6º do mesmo dispositivo, por sua vez, consagra a responsabilidade objetiva do Estado, ao estabelecer que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Assim, a MP 966 isenta os agentes públicos, mas o Estado permanecerá respondendo de forma objetiva- independentemente de culpa ou dolo- pelos danos causados por seus agentes, sem que haja a possibilidade de recomposição dos valores ao erário público por meio da competente ação de regresso. Há um componente permissivo de irresponsabilidade concedido aos agentes públicos no combate à pandemia, que afronta os princípios mais básicos que norteiam os atos da Administração.
Equivocam-se aqueles que veem na MP 966 apenas uma espécie de “imunidade” concedida aos gestores públicos para que não sejam futuramente responsabilizados por irregularidades em contratações ou medidas econômicas que fujam às normas legais. A medida, além de blindar agentes públicos nos limites que apresenta, acaba propiciando o mau uso dos recursos públicos, tão escassos e particularmente necessários nesse momento.
Acrescente-se que a expressão “agente público” utilizada no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal e na MP 966 abrange toda pessoa física que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da administração indireta, ou seja, abrange agentes políticos, todos os servidores públicos (estatutários, celetistas e temporários), militares e particulares em colaboração com o Poder Público. Com isso, a MP 966, ao alterar irregularmente regras gerais de Direito de forma “privilegiada” e direcionada a um grupo específico de indivíduos afronta preceito constitucional garantidor de direito fundamental que assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º).
Por fim, ainda cabe uma reflexão: mesmo diante do princípio da incomunicabilidade das instâncias, uma norma que altera significativamente o conceito jurídico de culpa, para restringir a responsabilidade civil e administrativa de agentes públicos, poderá encontrar um caminho para também ser utilizada no direito penal.
Artigo publicado na coluna de Fausto Macedo no portal O Estado de São Paulo.